Resenhas

Perfis de mulher alencarianos



Estudo dos perfis de mulher na obra de José de Alencar

 

         José Martiniano de Alencar (1829-1877) foi um jornalista, advogado, político e escritor brasileiro, tendo se consagrado como romancista. Sua carreira política foi vivenciada em paralelo à carreira de escritor. Monarquista e membro do Partido Conservador, enquanto parlamentar, o cearense envolveu-se em grandes polêmicas, sendo contrário a leis que visassem algum um benefício aos escravizados, tendo, inclusive, sido contra à abolição ao regime escravocrata no Brasil. Junto a tais ideologias estava a ambição de criar uma identidade e tradição cultural nacional afeita aos moldes cristãos, conservadores e patriarcais de sua época, tendo refletido muitos desses valores em sua obra – instrumento desse seu engajamento político e ideológico.

Dada a devida contextualização e reflexão crítica, é possível observar em seus livros uma prosa instigante e de qualidade considerável, que o consagrou como um dos grandes escritores nacionais e traçou um panorama da sociedade brasileira de seu tempo.

         Os romances de sua vasta obra dividem-se em indianistas, históricos, regionalistas e urbanos – sendo esses o objeto do estudo que segue: Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875). Alencar é autor da primeira fase do romantismo brasileiro, escola caracterizada pelo ufanismo e nacionalismo; multiplicidade de paisagens geográficas (presente nas ricas descrições), assim como a crítica de costumes, principalmente da hipocrisia moral.

         Nota-se essa crítica bem evidente em Senhora, que questiona a especulação dos casamentos por interesse monetário, mas ela também é presente em suas obras anteriores o que pode, por vezes, dar “ares progressistas” que logo são desmentidos quando se analisa mais atentamente a trajetória e o propósito do autor.

Em Diva, assim como em Lucíola, o amor só se eleva e realiza num ermo, a sós e em contato a natureza, como se a sociedade corrompesse o indivíduo e seus sentimentos – fiel representação do mito do bom selvagem defendido por Rousseau, que influenciou muitos autores românticos.

A pureza, a castidade, o recato e a inocência são essências correntes e excessivamente enfatizadas nas heroínas alencarianas. E não só nesses perfis de mulher de seus romances urbanos: além de Lúcia, Emília e Aurélia, Iracema, de sua obra indianista, reflete essas mesmas características.

Lúcia, embora seja cortesã, conserva "a virgindade do coração " é reduzida ao celibato que a redime no fim da narrativa; Emília, o recato desmedido que seu próprio pai classifica por "vício", negando-se a ser tocada mesmo em situações sociais ou exame médico. Aurélia, após meses de casada, só tem a consumação do casamento após a solução do conflito. Iracema, virgem dos lábios de mel, guarda o segredo da Jurema, um solene obstáculo ao seu amor por Martim.

Nota-se, pois, a virgindade como temática recorrente e a extrema valorização dessa como se representasse a maior, se não a única e indispensável virtude de uma mulher. O autor buscava clara e incessantemente imprimir nas personagens valores conservadores, cristãos e patriarcais que defendia. Ocorre que a repetição se torna por vezes enfadonha. Muito se critica seu esmero descritivo e a linguagem rebuscada, típica da escola romântica, e pouco se comenta desse puritanismo insistente.

A despeito de tudo isso e da pieguice romântica, é inegável que suas personagens são corajosas, cheias de personalidade e mesmo desafiadoras para os ditames daquele tempo. Ao que se deva, provavelmente, o sucesso das obras até hoje.


Leia abaixo as três obras resenhadas.  

Resenha de Lucíola - José de Alencar

No Romance Lucíola, a personagem-título traz um caráter complexo, ambíguo. A começar pelo nome Lucíola, diminutivo de Lúcia, do latim "Lucius", que significa luz, brilho. Também se assemelha graficamente à palavra Lúcifer, de mesmo significado. A partir dessas analogias é possível traçar esse perfil de mulher criado por José de Alencar.     

      Recém-chegado à corte carioca, Paulo, um jovem de boa família, terá um papel decisivo na vida de Lúcia, a mais bela e desejada cortesã do Rio de Janeiro. Uma mulher que, embora atrelada ao meio da prostituição, conserva uma aparência angelical, como se apesar de suas práticas não fosse totalmente absorvida pela atmosfera sórdida na qual habita. A despeito das devassidões a que submete seu corpo, existe nela uma elevação moral, a castidade espiritual, que poucas pessoas alcançam.

        Paulo, à primeira vista encanta-se:

 

— Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!

(ALENCAR; José, 1992, p.17).

 

       Logo, o amigo fará questão de desenganá-lo. Nesse trecho, percebe-se um dos ditames da época:

 

— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la ?. . .

Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.

(ALENCAR; José, 1992, p.15)

 

       A cortesã é facilmente identificável numa sociedade em que, uma senhora considerada respeitável, nem sequer saía de casa desacompanhada. O fato de Lúcia estar só é o bastante para que ela não seja considerada uma mulher séria. Ainda que rica e independente, uma mulher tinha de ter sempre perto de si quem a livrasse do vulgo "prostituta". Seja um tutor ou uma dama de companhia, na falta de parentes mais próximos. – É o que se pode observar em outros romances urbanos de José de Alencar, como “Senhora”. 

       Vindo da província, portanto alheio à maledicência daquele círculo social, Paulo é o único que tem a sensibilidade necessária para perceber as qualidades morais de Lúcia.

       A auréola de inocência que a rodeia apesar de tudo; as amostras de dignidade em meio às ações mais degradantes são fatores inexplicáveis, inconciliáveis. É visível a peculiaridade do caráter da moça que, ora surge como anjo, ora como demônio.

      Num mesmo ser coabitam a candura e a sensualidade. Como amante ela é submissa e ao mesmo tempo voluntariosa. O autor, com sutileza, cria uma atmosfera de crescente mistério em que o leitor também acaba seduzido por esta incógnita.

    O romance entre uma celebridade carioca e um jovem de província gera boatos na sociedade fluminense. Aquela que é desejada por tantos homens distingue Paulo com uma fidelidade descabida para uma mulher em sua condição. Pois Lúcia, sendo uma prostituta de luxo, é vista também como uma espécie de objeto de domínio público, sem direito sobre seu corpo e seus sentimentos:

 

"Ah, esquecia-me que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça, que não pode recusar quem chega."

(ALENCAR; José, 1992, p. 67).

 

     Começam a surgir boatos maliciosos, como uma forma de coibir um enlace inconveniente àquele meio. Paulo, então, vê-se divido entre o sentimento que carrega e o papel que cumpria numa realidade em que se vivia para os outros e não para si, pois tudo gira em torno dos padrões comportamentais da época.          

      Entre idas e vindas, a conturbada união somente se harmoniza junto da natureza. É como se Lúcia, desvinculando-se do meio urbano, pudesse enfim alcançar a paz almejada.

     No auge de seus encantos, ela refugia-se na obscuridade, pratica o desapego material, como se negociasse o resgate de si própria. E é através de Paulo que se dá essa redenção, pois Lúcia encontra nele, finalmente, o amor verdadeiro. Então, o laço que une a ambos deixa de ser mero envolvimento carnal e passa a ser um enlace sentimental, espiritual. Eis a sublimação que caracteriza o ponto alto do romance.

 

— Naquele dia... não soube explicar-lhe... É isto! Veja! A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida!

Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar naquela imagem simples um fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado.

(ALENCAR; José, 1992, p.104)

 

      Personagem esférica, Lúcia passa por radical transformação: ela abandona o luxo e o poder que a rodeiam para ter uma vida simples, no campo. O refúgio, a descoberta da essência do homem, o enleio romântico entre a natureza, é característico de obras do romantismo como em “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe.

     É nesse âmbito que a história da moça é revelada, e sua imagem passa de libertina a mártir que com a vergonha e a humilhação salvou a vida daqueles que amava: no passado, sem meios para manter a família que adoece por conta de uma febre amarela, ela vê-se nas mãos de Couto, que se aproveita da situação para aliciá-la. Ao remontar o passado, Lúcia revela sua identidade verdadeira: Maria da Glória. “Maria”, nome consagrado e santificado; o nome da mãe de Jesus. Nome de batismo que remete ao respeitável, ao socialmente aceito.

     Na época em que se passa o romance, o crescimento da urbanização, devido à Revolução Industrial, criou um universo capitalista que enjeitava aqueles que não tivessem poder aquisitivo. Poucas eram as formas de ascensão social para famílias nessas condições, sobretudo às mulheres, cuja única proteção provinha do pai, e, futuramente, do marido. Uma vez expulsa pelo pai e desonrada, sem possibilidades de arranjar um bom casamento, só restava a prostituição como meio de subsistência. Maria da Glória é, portanto, uma vítima do meio social em que vive.

        Com suma habilidade, o autor faz da cortesã, ser execrável em todas as épocas e culturas (e ainda hoje), uma heroína – o que não deixa de ser uma transgressão para a época.  Mas esse respeito e afeição do leitor custam à personagem o recolhimento, a abstinência sexual, a negação dos prazeres, a total anulação de sua pessoa. É ela própria quem se defende “... o vinho não é menos bom, nem menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo”, (ALENCAR; José, 1992, p. 71) para depois resignar-se: “Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar”. (ALENCAR; José, 1992, p.122).

       Em constantes remissivas cristãs, há sempre a disposição dos opostos: o pecado e a virtude; o sofrimento e o prazer; a fama e a obscuridade; o luxo e a modéstia. Que não podem, de forma alguma, ocupar o mesmo tempo-espaço. A elevação moral que a heroína atinge é feita através de sua abnegação. Os desejos carnais e prazeres terrenos – tão naturais da criatura humana – são demonizados, considerados obstáculos para a sua redenção.

       Um preço ainda mais alto é imposto: a morte dela e conseguintemente do filho, fruto de um relacionamento ilegítimo, é o ideal para que ela tenha, enfim, a remissão dos pecados, a libertação e a paz eterna. É notável a marginalização, o estigma, que embora sem culpa, essa mulher esteja indissoluvelmente condenada, por uma sociedade corrupta, hipócrita e mesquinha.

       Lucíola, conforme o prólogo do livro, também remete ao nome de um inseto que vive à beira do charco, porém reluz no escuro. Metáfora perfeita para descrever Lúcia, que mantém a nobreza de caráter embora viva num meio torpe e impiedoso.

 

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ALENCAR, José.

Lucíola – Romance – Editora Ática, 1992.

 

Resenha de Diva - José de Alencar

Publicado em 1864, Diva pertence aos títulos classificados como romances urbanos de José de Alencar e caracteriza um de seus famosos perfis de mulher.

O enredo gira em torno de Emília, filha de um rico capitalista, que ainda adolescente é apresentada a Augusto Amaral, médico negro recém-formado designado a tratá-la. Apesar de as excentricidades do caráter da menina dificultarem o tratamento, ele consegue salvá-la, recusando pagamento e tendo a eterna gratidão de sua família.

Retornando à corte dois anos mais tarde, dr. Amaral percebe que a menina outrora feia e desengonçada, transformou-se numa das mais belas moças, sendo a "rainha do baile" nos salões. Daí, então, o nome "Diva" que intitula o livro. Em suas descrições e construção de personagem, José de Alencar traça um panorama da sociedade do Rio de Janeiro do século XIX.

Emília, Mila, como é chamada, possui um difícil temperamento e, ao passo que provoca o encanto em Augusto, parece ter prazer em espezinhá-lo. Ele, muito sagaz, logo percebe e corresponde. Cria-se um tenso jogo amoroso intercalando belas declarações com alfinetadas, ironias e ações que desafiam as convenções da época.

Mimada e voluntariosa, Mila é acostumada a ter todas as suas vontades atendidas e uma de suas particularidades é não permitir toque físico, nem mesmo pelos entes mais próximos ou um médico por exemplo. É com essa característica que o autor busca, de forma incessante, exaltar, através do recato, a castidade como mais alto valor feminino, premissa recorrente em suas heroínas:

Essa menina caprichosa, calma e impassível à dor, velando-se como as virgens mártires do cristianismo para morrer pudicamente...” (ALENCAR, 2006, p.11)

Emília não valsava; nunca nos bailes ela consentiu que o braço de um homem lhe cingisse o talhe.” (ALENCAR, 2006, p.17)

O duelo amoroso segue, criando uma atmosfera de incerteza sobre as intenções e sentimentos de Mila. Os diálogos, ponto forte na narrativa dos perfis de mulher, são muito bem elaborados, com tiradas afiadas e um sarcasmo fino e delicioso de se ler.

Apenas em seus encontros a sós, em ambientes externos, o afeto dos dois pode dar vazão. O contato com a natureza se contrapõe à urbanização e à sociedade na prosa alencariana, na qual, uma enleva o ser humano e a outra o faz decair:

“Fora assim, Paulo, que se formara essa natureza tímida ao mesmo tempo que audaz. Havia nela a transfusão de duas almas, uma alma de criança e outra alma de heroína. Só em face da natureza, a agreste poesia daqueles ermos comunicava com seu espírito e o enchia de arrojos admiráveis. Em presença de alguém a vida soldava-se no íntimo como num invólucro impenetrável; restava apenas na superfície uma sensibilidade irritável.” (ALENCAR, 2006, p.27)

Nota-se com nitidez a influência de Rousseau, que tanto inspirou autores românticos na crença de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Essas representações do "mito do bom selvagem" são vistas tanto em romances urbanos quanto nas obras indianistas de Alencar.

As atitudes contraditórias e instáveis de Mila criam um certo mistério sobre seus sentimentos por Augusto – ora ela arrisca sua reputação encontrando-se com ele a sós, ora trata-o com frieza, enfurecendo-o. Trava-se uma relação com comportamentos de cão e gato, demonstrando caprichos pueris, quase doentios. Quando as animosidades entre o jovem casal parecem chegar ao estopim, Emília finalmente se declara e tem-se abruptamente o clássico final feliz.

Todo enredo é narrado por meio do recurso epistolar no qual Augusto troca cartas com o amigo Paulo, que mais tarde envia o relato à mesma senhora com quem confidenciou em Lucíola. Embora esses personagens ressurjam em Diva, essa obra não é uma continuação da anterior.

Foste meu confidente, Paulo, sem o saberes, a só lembrança da tua amizade bastou muitas vezes para consolar-me, quando eu derramava neste papel, como se fora o invólucro de teu coração, todo o pranto de minha alma.” (ALENCAR, 2006, p.7)

Dessa forma, Diva é um típico exemplar do romantismo brasileiro. Não possui, no entanto, a mesma força e expressividade de Lucíola ou Senhora, mas retrata crenças, costumes e valores patriarcais de seu tempo enquanto esboça um perfil de mulher a vivê-los e por vezes desafiá-los.

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ALENCAR, José de.

Diva, Editora DCL,2006.

Resenha de Senhora - José de Alencar

    Da safra de romances urbanos, "Senhora" tem como protagonista Aurélia Camargo, que representa um dos marcantes perfis femininos de José de Alencar. A obra destaca a frieza das relações movidas pelo dinheiro e os indivíduos corrompidos pelo meio em que vivem. O enredo é dividido em quatro partes denominadas: "O Preço", "Quitação", "Posse" e "Resgate", que refletem o caráter de transação comercial dos casamentos por interesse – tema central do livro.

       Fernando Seixas é um rapaz pobre, mas atraído pelo luxo. Atrás de um casamento vantajoso, rompe o noivado com Aurélia por um dote de trinta contos. Porém, uma herança inesperada torna Aurélia a mais rica e disputada moça da sociedade fluminense. Com o auxílio de seu tutor Lemos, ela traça um plano que permite testar o caráter do antigo noivo. 

       Lemos oferece a Fernando um dote ainda maior, bem como um contrato de casamento, o que soa mais como um negócio do que como um enlace matrimonial. Todavia, é o próprio Seixas quem depois considera que essa era uma prática muito comum no seu círculo social. Dessa maneira, a hipocrisia e frivolidade das classes abastadas são escancaradas na prosa alencariana.

       Em dificuldades financeiras, Seixas aceita a proposta, uma vez dispensado do compromisso anterior. Assim, Aurélia tem a plena confirmação de que o rapaz não a abandonou pelo amor de outra mulher, mas pelo dinheiro. Na noite de núpcias, ela humilha o marido dizendo que o comprou. Assim, unidos pelos laços do matrimônio, mas distanciados pelas circunstâncias, o casal sustenta um casamento de aparências.

       Através da protagonista, o autor questiona os valores da sociedade de sua época. Aurélia, de forma irônica, faz a cotação de seus pretendentes – perfeita alusão a um mundo em que o valor dos indivíduos está intrinsecamente ligado à sua situação financeira. Conforme Bosi (2012, p.145):

 

É sempre com menoscabo ou surda irritação que (o autor) olha o presente, o progresso, a “vida em sociedade”; e quando se detém no juízo da civilização, é para deplorar a pouquidade das relações cortesãs, sujeitas ao Moloc do dinheiro. Daí o mordente das suas melhores páginas dedicadas aos costumes burgueses em Senhora e Lucíola”.

 

       Nota-se que Aurélia e Seixas apresentam tanto qualidades, quanto defeitos e falhas, o que os humaniza e difere de outros personagens da prosa romântica, cujo universo maniqueísta se limita a representar como totalmente bons ou maus.

       O prólogo “Ao leitor”, escrito em primeira pessoa, bem como certas manifestações do narrador, garantem dinamismo e verossimilhança à obra. Tais ingredientes dão aspectos realistas à prosa romântica de Alencar, entretanto, como pondera Bosi, estes surgem apenas como um recurso, uma manobra literária com a qual o autor encaminha o leitor ao desfecho desejado.

       Percebe-se, de fato, uma crítica mordaz às relações estabelecidas de forma mercantil, contudo, o glamour aristocrático, longe de ser execrável, embeleza as descrições e imagens criadas no estilo do escritor: “Era rica e formosa. Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante”. (ALENCAR, 2008, p.9). Sob esse ângulo, a fortuna é vista de uma ótica menos negativa.

       Mas é ainda sob o fascínio dessa riqueza que Seixas, após o duro golpe, evolui moralmente: por meios honestos e próprios, ele restitui a quantia do dote recebido pelo casamento e resgata a sua dignidade, pedindo o divórcio. Convencida da transformação de Seixas, Aurélia declara seu amor e, enfim, o casamento é consumado.

   Dessa maneira, tem-se, na “redenção” das personagens, a dissolução do conflito que impedia a concretização de um ideal, neste caso, o amor – traço característico dos folhetins românticos.

       Um dos fatores que fazem com que José de Alencar tenha destaque na prosa romântica é sem dúvida o apuro do escritor na construção de suas personagens femininas como Aurélia, Lucíola e Emília. Elas transmitem, ainda que sob a máscara da beleza irretocável e trejeitos comuns às heroínas românticas, toda a complexidade psicológica a partir suas intensas personalidades. Todas possuem atitudes ousadas e corajosas ante seus objetivos, transcendendo barreiras, sendo altivas e fortes, mesmo sob o jugo de uma sociedade totalmente patriarcal.

       Obviamente, sendo tais personagens frutos de uma ficção cujo público-alvo era a burguesia do século XIX, não se pode ter certas “ilusões ideológicas”.  O certo é que há, embora de forma sutil, a quebra de um conceito de “mulher ideal” e incondicionalmente submissa, muito presente no imaginário comum – e que infelizmente se sustenta até hoje – o que não deixa de ser uma transgressão para a época.

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 REFERÊNCIAS

 

ALENCAR, José. Senhora, 2 ed., São Paulo: Ciranda Cultural, 2008.

BOSI, Alfredo

História Concisa da Literatura Brasileira, 48 ed., São Paulo: Cultrix, 2006


Budapeste - Chico Buarque

Em Budapeste, José Costa, narrador-personagem, é um ghost writer que conta (ou supõe contar) as peripécias de sua vida conturbada. Dividido entre dois continentes, duas mulheres, dois idiomas e duas culturas - nesse conflito denso, é discutida a  crise de identidade.

A partir da correlação: Vanda/ Kriska, Rio de Janeiro/ Budapeste, Joaquinzinho/ Pisti  há uma duplicidade presente em todo o texto, que contrasta nas imagens sugeridas pelo autor. A pele branca de uma mulher, a pele morena de outra; numa cidade  neve, em outra, praia. Uma vez instalado na capital húngara, ele sente saudades de casa, da esposa, de sua língua pátria: "Oi, é o José, Vanda, Vanda, Pão de Açúcar, marimbondo, bagunça, adstringência...” Mas, na praia de Ipanema, pensa em Kriska e balbucia húngaro enquanto dorme, único meio pelo qual, estranhamente, trava comunicação com o filho. Nesse contexto, José Costa (ou Zsoze Kósta) se revela um ser inconstante, insatisfeito, incompleto.

Na insuficiência desse universo paralelo, há a busca ávida pelo eu. Um caos de sentimentos, de ideias que estabelecem a problemática dos lugares e não-lugares, do não-relacionamento, dos seres e não-seres. Tudo se remete, se reflete.  Uma relação inexistente: Vanda, gêmea, de imagem já duplicada e mil vezes reproduzida num canal de TV, tal fosse mera projeção. Como José que, fumando na janela, se sente ameaçado por outro homem de atitudes idênticas - um alter ego (?). Até a capa do livro, espelhada, torna-o objeto da própria metalinguagem, abundante numa obra que remete a si mesma.

Em planos opostos, vida literária e vida pessoal se fundem e se chocam. José tem, no auge da qualidade de seus escritos, a dificuldade da comunicação verbal: "De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando textos[...] não me sobravam boas palavras para ela.” Proporciona a seus clientes, em autobiografias apócrifas, a autoafirmação, o conforto, a identidade que ele mesmo procura. Mais tarde, essa literatura é transformada em produto, e o autor, ironizando o sucesso dos best-sellers, delineia um personagem que é traído justamente pela obscuridade que defende. E, na omissão da autoria – e conseguintemente da glória, há o controverso: com certa pompa, os encontros de “escritores fantasmas” revelam as mesmas mazelas do mundo literário convencional. Esses são só alguns pontos fortes no caráter ambíguo do livro.

Entretanto, apesar de todo esse conflito existencial, Chico Buarque faz uma quebra na tensão utilizando muito humor, o que dá aparente leveza e disfarça a profundidade do texto. A passagem do tempo é sutilmente sugerida em gestos, atitudes ou mudanças na aparência das personagens, isentando o autor de grandes satisfações cronológicas.     

O Romance chega ao clímax no ponto em que esse “eu”, engasgado com as próprias palavras, rompe: " o autor do livro sou eu" - e é como se uma de suas identidades morresse. No desfecho da narrativa, José passa de ventríloquo a boneco, de autor apócrifo a personagem de um livro apócrifo, escrito por outro, numa inversão de papéis, recebe pelas mãos do Sr... as honras que não teve. E quando esse homem se reduz à sombra de outro, a existência passa a ter sentido.

Budapeste é a perfeita ambivalência, um labirinto, um livro dentro do outro. Com maestria, o autor costura toda a narração com metáforas conexas e fecha esse círculo parafraseando belamente o jogo de espelhos e reflexos das personagens que criou.: “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa”.

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BUARQUE, Chico.

Budapeste – Romance - Companhia das Letras, 2003

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Lidiane Santana

S. Bernardo -  Graciliano Ramos

Publicado em 1934, S. Bernardo é o segundo romance de Graciliano Ramos. A obra pertence à segunda fase do modernismo brasileiro, marcada pelo romance de 30,  época na qual os anseios modernistas já estavam mais amadurecidos e consolidados. Com uma linguagem econômica, afeita ao coloquialismo característico da prosa moderna, a escrita é fluida, pois o narrador-personagem faz seu relato sem rodeios.

O enredo é sobre a trajetória de Paulo Honório, que decide escrever as reviravoltas de sua vida ao passar de empregado a dono da fazenda S. Bernardo. Sem ocultar os meios de que se dispôs para alcançar seus objetivos, ele prende o leitor com sua intrigante personalidade:

 

"A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las."

 

(Ramos, 2011, p. 30)

 

Ao desfiar seu rosário, Paulo descreve o caráter de outros personagens e o seu próprio, no qual se destacam o autoritarismo e a falta de empatia, que tanto criam conflitos, sobretudo com sua esposa. Nesse aspecto, percebe-se a preocupação social,  tema corrente nas obras modernistas.

Tendo, como o marido, crescido na pobreza e enfrentado privações até se formar como professora, Madalena é afetuosa e solidária com todos , principalmente com os mais pobres, pois se identifica com eles. Em contraponto, a dificuldade e a luta pela ascensão social fizeram Paulo Honório se igualar aos patrões opressores, tornando-o impiedoso com os subalternos.

É visível o abismo entre marido e mulher, resultante da superioridade moral e intelectual da esposa. Tudo isso, aliado a simples eventos, culmina no ciúme doentio e nas paranoias que fazem o protagonista, sob muitos aspectos, comparável a Bento Santiago, personagem antológico da obra machadiana.

Numa espécie de zoomorfismo herdado do naturalismo, há, também, a própria animalização, quando o fazendeiro se descreve fisicamente, com olhos, boca e mãos enormes, como se sua rudeza de espírito transparecesse também em suas feições: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.”  (Ramos, 2011, p.75).

E é essa “alma agreste” a causa de sua ruína pessoal. Focado no crescimento do seu patrimônio, falta a ele, todavia, inteligência emocional para se relacionar com aqueles que o rodeiam.

Astuto e determinado, o protagonista consegue tudo o que quer, entretanto, no fim, tal prosperidade não faz dele propriamente um vencedor. A bonança se iguala à sua decadência. Assim, o desfecho do livro deixa um gosto acre na boca. Ele reconhece suas falhas, mas, impotente, se diz incapaz de mudar; e depois de tanto empenho, chega à meia idade triste e misantropo. Não sabe o que fazer dos outros, não sabe o que fazer do que conquistou, não sabe o que fazer consigo.

S. Bernardo é um livro seco, conciso e mesmo assim profundo. Foi feito pra se ler “numa tacada só”,  para aqueles que não esperam um romance água com açúcar, mas sim o proverbial soco no estômago.

 

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 RAMOS,Graciliano. Edições BestBolso, Rio de Janeiro,2011.

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 PS: Ao fim da leitura desse livro, tive muitas reflexões, junto a um certo pesar por terminá-lo e, ao mesmo tempo, um vago arrependimento  por não tê-lo lido antes.

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Lidiane Santana

 


A Carne - Júlio Ribeiro

Publicado em 1888, o romance naturalista A carne dividiu opiniões e foi alvo de grande polêmica. O enredo gira em torno de Lenita, uma jovem rica, bela e culta que, ao ficar órfã e só, retira-se para a fazenda de coronel Barbosa, ex-tutor de seu falecido pai, no interior de São Paulo.  Lá, ela conhece Manuel Barbosa, o filho do coronel, homem de quarenta e tantos anos,  experiente e muito instruído.  Rapidamente, entre os dois, se estabelece uma forte amizade, que logo resulta num envolvimento amoroso, ou, melhor dizendo, “carnal” – como o título do livro sugere.

Dedicada à Émile Zola, a obra é uma síntese de todas as características da escola naturalista: a linguagem é direta e objetiva e, em alguns pontos, marcada pelo cientificismo; as descrições, sobretudo da natureza, são minuciosas; o homem é estudado e exposto através de seus aspectos biológicos e fisiológicos, bem como sob uma visão determinista – nesse caso, instintos como a libido sexual, fator que dita as ações dos protagonistas; patologias físicas e psicológicas também são exploradas.

Todas essas particularidades culminam no zoomorfismo, que atribui às personagens atitudes típicas de animais: “E ela queria Barbosa, desejava Barbosa, gania por Barbosa.” (RIBEIRO, 1988, 121) – na utilização do verbo “ganir”, percebe-se a animalização da espécie humana.

Contrariando todas as convenções sociais de seu tempo, Júlio Ribeiro ousa ao apresentar ao público uma protagonista independente, que se declara e se entrega a um homem não pelo amor romântico, mas mordida pelo aguilhão do desejo. Diferente das heroínas típicas dos romances burgueses, virgens intocáveis, castas e submissas afeitas ao moldes do Romantismo, Lenita é decidida, voluntariosa e sensual. 

Poucas vezes na literatura, a sexualidade, sobretudo a sexualidade feminina (até então ignorada ou omitida), foi abordada de forma tão explícita. Ideias sobre o divórcio e o amor livre são abertamente discutidas pelo autor, que questiona uma das mais antigas instituições: o casamento.

Tais abordagens incitaram a grande repercussão do romance, que tanto fascinou quanto incomodou. O núcleo intelectual da época era constituído por escritores liberais, mas também por mentes conservadoras que se escandalizaram com a obra.     

Entre os opositores, o mais exaltado foi o padre Sena Freitas, que escreveu um artigo intitulado “A carniça”, no qual desancou o texto de Júlio Ribeiro descrevendo-o como “[...] naturalista e indecente como a maior parte dos de Zola”, algo que atentava contra a moral e ultrapassava os limites da tolerância. Também julgou o enredo e a personagem inverossímeis e incoerentes, criticando o sobrepujante erotismo da obra.

Júlio Ribeiro rebateu a crítica, publicando uma série de artigos que intitulou “O urubu Sena Freitas”. Os textos frutos do embate entre os dois escritores foram compilados, originando o livro “Uma polêmica célebre”, publicado em 1934. Porém, em meio a toda essa celeuma, nem todos reprovaram a obra do escritor mineiro: meio século depois da publicação de A carne, enquanto Álvaro Lins o excluía da literatura brasileira, Manuel Bandeira reconheceu o romance como um dos melhores exemplos no naturalismo.

O fato é que, apesar de conter alguns excessos em seu discurso naturalista, com trechos repletos de apreciações geográficas e dados sob fauna e flora – como nas enfadonhas cartas trocadas entre os protagonistas – é inegável o valor desse romance, cujo autor deveria figurar ao lado de Aluísio Azevedo como um dos grandes romancistas do Naturalismo.

No entanto, nos livros de crítica literária, pouco se aborda sobre a obra de Júlio Ribeiro. De certo, por conta da hipocrisia e do puritanismo de uma sociedade retrógrada, ele tenha sido injustamente “excomungado” do âmbito literário. Cabe aos leitores que se dispam de julgamentos morais ao ler e analisar a obra referida. Só assim, esse grande autor terá o lugar mais do que merecido na literatura brasileira.

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RIBEIRO, Júlio.

A carne, 4 ed., São Paulo: Círculo do livro, 1988.

 

SILVEIRA, Célia Regina da.

 

Erudição e Ciência: as procelas de Júlio Ribeiro no Brasil oitocentista (1845-1890). São Paulo: UNESP, 2008.

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Lidiane Santana

O diário de Anne Frank

Sensibilidade e luta

 

       Escrito entre 1942 e 1944, o diário escrito por Anne Frank é um extraordinário depoimento histórico. Durante a Segunda Guerra Mundial, a família Frank e mais quatro pessoas se esconderam dos nazistas no "anexo secreto", um refúgio localizado no sótão do escritório de Otto Frank, pai de Anne.                      

       Constantemente coagidos, eles só podiam visitar estabelecimentos e casas frequentadas pelo seu povo. Eram obrigados a trazer sobre a roupa uma estrela amarela que identificasse sua origem judaica e foram proibidos de utilizar até os próprios veículos. Quando a perseguição chegou ao auge, a única alternativa foi se esconder. Nesse ponto da narrativa, já é possível perceber o preconceito e o ódio que circundava os judeus.

         Com o máximo de pertences que podiam carregar, caminhando sob a chuva, a família de Anne segue para o seu refúgio, cheia de incertezas:

 

“Preocupada com a ideia de ir para um esconderijo, juntei as coisas mais malucas na pasta, mas não me arrependo. Para mim, as lembranças são mais importantes do que os vestidos.”

 

       Ao ouvir no rádio que Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês, colheria relatos sobre o sofrimento das pessoas após a guerra, Anne decide transformar seu diário num livro. Ela apelida-o de “Kitty” e escreve como se estivesse mandando uma carta a uma amiga.

       Assim, uma judia de treze anos narra todas as experiências que viveu durante o tempo em que ficou no esconderijo. Além do valioso testemunho sobre a guerra, o livro também demonstra os conflitos enfrentados por todos. O constante medo de serem descobertos pelos invasores alemães se somava à tensão provocada pelo isolamento.  Ânimos exaltados, discussões, falta de mantimentos, entre outros problemas. Para Anne, a crise ainda era acrescida pela sua adolescência, período que, em circunstâncias comuns, já é bastante conturbado.

       Entre a narrativa dos episódios da guerra, ela descreve seus pensamentos mais íntimos sobre a vida, as pessoas, seus sentimentos e ideias. Algumas dessas impressões refletem os anseios e dúvidas de qualquer outra jovem: amores, sonhos e a relação familiar. Porém, muitas vezes, suas considerações avançadas sobre vários assuntos refletem uma garota precocemente amadurecida pelas circunstâncias:

 

“Não consigo me imaginar vivendo como a mamãe, a Sra. Van Daan e todas as mulheres que fazem seu trabalho e depois são esquecidas. Preciso ter alguma coisa além de um marido e filhos aos quais me dedicar! Não quero que a minha vida tenha passado em vão, como a da maioria das pessoas. Quero ser útil ou trazer alegria a todas as pessoas, mesmo àquelas que jamais conheci. Quero continuar vivendo depois da morte!”

 

       Nessa e em muitas outras reflexões visionárias, Anne questiona o papel da mulher na sociedade, os conflitos de geração, dramas existenciais, valores e planos para um futuro incerto – o que demonstra ao leitor a transição de uma menina, que, aos poucos, se torna mulher em meio a todo aquele caos.

       O diário é um quadro vivo do holocausto, mas, ao contrário dos livros de história, impessoais e distanciados, é possível se sensibilizar com o drama de personagens reais, ainda que sob o olhar da narradora. A sensibilidade, a inteligência e a força de Anne cativam o leitor nesta obra, cujo final, infelizmente, é determinado não pela autora, mas por homens da polícia de segurança que descobriram o anexo secreto e prenderam todos.

       Pouco depois, Anne morreu de tifo, num campo de concentração, aos quinze anos de idade, quando muito ainda podia oferecer de seu talento ao mundo. O único sobrevivente da família, Otto Frank, se dedicou a divulgar a mensagem da filha.

       O diário de Anne foi publicado em 1947 e traduzido para 67 línguas, tornando-se um dos livros mais lidos no mundo.

       Mas ela conseguiu: continuou viva após a morte. Sua breve história de vida foi o suficiente para torná-la o emblema da luta do povo hebreu. Registros como esse diário devem ser sempre lembrados no intuito de refletir valores e atitudes para que tais absurdos jamais se repitam.

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FRANK, Anne. O diário de Anne Frank, Best Seller, 2007.

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Lidiane Santana

 


Amor de Perdição - Camilo Castelo Branco

  Obra-prima do ultrarromantismo português, Amor de Perdição narra o amor impossível entre Teresa Albuquerque e Simão Botelho, cujo enlace é impossibilitado devido à oposição de suas famílias. É fácil notar o dialogismo com o clássico Romeu e Julieta, de Shakespeare. O enredo e os elementos são os mesmos: a paixão desmesurada de dois jovens, o ódio entre suas famílias, e, com a morte de ambos, o trágico final. O heroísmo das personagens e o mesmo idílio belo e comovente manifestado em extremos de romantismo. Acresce que na obra de Camilo Castelo Branco existe ainda a tocante figura de Mariana que, nutrindo um amor não correspondido por Simão, traz o caráter elevado dos personagens românticos. Assim, a tríade amorosa Simão-Teresa-Mariana é narrada em páginas marcadas pelo intenso sentimentalismo lusitano.

No romantismo, o sofrimento amoroso é temática recorrente nas obras e se dá por conflitos externos: convenções sociais, imposição familiar, oposição aos padrões da época.

Vizinhos na cidade de Viseu, Simão e Teresa se apaixonam ao fitarem-se através das janelas de suas casas. O namoro segue por meio de correspondência. Decidido a se casar com Teresa, Simão larga a vida desregrada e volta a estudar para se formar e assim ter meios de contrair matrimônio. Esta é uma característica romântica, a evolução ou redenção através do amor: “Achei-me homem aos dezesseis anos. Vi virtude à luz do teu amor. Cuidei que era santa a paixão que absorvia todas as outras, ou as depurava com seu fogo sagrado.” (CASTELO BRANCO, 1997,p.109).

Seus pais se odeiam por conta de litígios em que Domingos Botelho, pai de Simão, foi de encontro aos interesses de Tadeu Albuquerque, pai de Teresa. Este, para impedir o enlace entre Simão e Teresa, tenta casá-la com seu primo Baltazar Coutinho. A moça se recusa terminantemente. Não conseguindo forçar o casamento da filha, Tadeu Albuquerque decide interná-la num convento da cidade.   

Depois de lutar com criados do primo de Teresa, Simão refugia-se na casa do ferreiro João da Cruz. Lá, conhece a bela Mariana, que também se apaixona pelo jovem. Irritado com a resistência do namoro, Tadeu Albuquerque transfere Teresa para o convento de Monchique, no Porto. Simão tenta raptá-la, mas trava novo confronto com Baltazar e acaba matando-o com um tiro. O rapaz entrega-se à polícia. Réu confesso, ele é levado a julgamento e condenado à forca. Utilizando sua influência, o pai de Simão consegue que a pena seja atenuada em dez anos de cárcere, mas o filho recusa a ajuda paterna, preferindo o desterro nas Índias. Enquanto aguarda o cumprimento de sua sentença, ele permanece no cárcere a ler e escrever cartas à Teresa. Ainda no convento, a correspondência do casal faz-se possível graças ajuda de uma mendiga.

Esses traços contrapõem o heroísmo e nobreza de espírito dos protagonistas às imposições mesquinhas da sociedade. Simão é um jovem altivo e idealista, que apoia os ideais da Revolução e, embora seja um fidalgo, cultiva amizade com pessoas de classes mais humildes:

"A origem supostamente aristocrática não torna Simão preconceituoso. Em sua interioridade, estão quebradas as etiquetas. Devido ao fato, a verdadeira acolhida, ele a encontra fora de casa. Em sua preconceituosa família, a irmã mais nova – a criança da casa – é quem o atende e é aquela por quem ele atende o afeto mais intenso." (AMBIRES, 2012, p. 27)

Mariana, que nutre um amor incondicional pelo jovem, é quem o ajuda a suportar as provações do cárcere. Descrente de sua pátria e renegando sua família, Simão recusa auxílio material. É ainda Mariana que, com a herança do pai, o sustenta durante a prisão, enquanto o jovem aguarda sua sentença. A abnegação e o caráter ilustre fazem dessa personagem a mais louvável heroína da novela.

A clausura e a distância do ser amado fazem, não raro, as personagens perderem a noção da realidade, criando um mundo particular manifestado em delírios febris:

"Dez anos! Dizia-lhe a enclausurada de Monchique. – Em dez anos terá morrido meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás ou não acharás memória de mim, quando voltares." (CASTELO BRANCO, 1997,p. 129).

E, ao sofrimento espiritual, segue-se a debilidade física. Amor de Perdição reflete perfeitamente as características da escola ultrarromântica, cujas obras exaltam o pessimismo, o negativismo e a tendência à morte como única forma de acabar com o sofrimento:

"Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade desse dia. E, se não, morre, Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória dos padecentes". (Ibid. p. 129)

A novela, que inicialmente é narrada em primeira pessoa, possui um narrador que conta os fatos a partir do relato de uma tia que o criou. Além disso, há uma preocupação em transcrever os acontecimentos pesquisados em documentos datados, o que dá veracidade e atenua a pieguice ultrarromântica da trama, tornando-a mais verossímil. Estes recursos também emprestam um caráter intimista à obra, envolvendo o leitor. Na descrição dos fatos ocorridos com as personagens, o foco narrativo é em terceira pessoa. Existe, ainda, o recurso epistolar presente nas cartas entre Simão e Teresa, que enfatiza o estilo passional da obra. Há, dessa forma, um texto dinâmico, no qual coexistem vários narradores.

Os protagonistas amargam suas longas agonias e têm por fim a consagração como mártires. No dia da partida, a nau dos condenados passa de fronte ao convento, onde Teresa acena para Simão ao longe. “Simão, adeus, até à eternidade”. (Ibid. p.134) – são as últimas palavras proferidas por Teresa, que logo após cai morta dos braços de uma criada. Simão é participado de sua morte e adoece, morrendo no décimo dia de viagem. O arremate do drama é tocante: “Mariana curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo.” (CASTELO BRANCO ,1997,p.140). O corpo do jovem é atirado ao mar e, antes que o cadáver estivesse submerso na água, Mariana atira-se a ele, suicidando-se.

Pouco se tem dos contornos dos lugares e das feições das personagens. É uma escrita que não prima pela descrição, mas pela ação, pela narração dos fatos. É, além disso, um texto em que o leitor, em meio ao primoroso romanesco, se depara com rasgos reflexivos de metalinguagem:

"A verdade é algumas vezes o escolho de um romance. Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa , não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte". (Ibid. p.127)

Dessa maneira, o autor justifica o “sofrimento” dos leitores em Amor de Perdição, obra que faz jus ao título, simbolizando uma sociedade injusta e intolerante, na qual não há lugar para sentimentos verdadeiros e, a luta por um ideal, por um amor acima dos ditames, representa o aniquilamento do indivíduo, o caminho para a sua danação.

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CASTELO BRANCO, Camilo.

Amor de perdição , Editora Klick, 1997.

AMBIRES, Juarez

Romantismo: Alguns valores e concepções, Escala educacional, Revista Literatura, Out/2012.

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Lidiane Santana

Dom Casmurro - Machado de Assis

 Capitu: "mulher por todos os lados"

 

Sem dúvida, uma das figuras femininas mais instigantes da literatura brasileira, Capitu fascina muitos leitores com o seu mistério. Mais de um século após a publicação de Dom Casmurro, a obra ainda é exaustivamente analisada e discutida em torno dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” dessa magnífica personagem machadiana.

Muito dessa verborragia provém da eterna dúvida sobre uma suposta infidelidade de Capitu. Vale ressaltar que, em primeiro lugar, a temática de Dom Casmurro gira em torno do ciúme, e não propriamente da traição, como tanto se apregoa. Em segundo lugar, o principal intuito deste texto é investigar as características deste perfil de mulher que traz por si só tamanha complexidade, que o fato de Bento Santiago ter sido traído ou não se transforma num mero detalhe.

Inteligente, ousada e desenvolta, Capitu demonstra, na imagem de menina precoce, uma mulher à frente de seu tempo. Em contraponto, tímido, medroso, fraco e até medíocre, Bentinho se mostra muito aquém da heroína do romance. Sendo assim, era natural que ele se sentisse diminuído diante dela.

Numa sagaz intertextualidade que rendeu à obra referida a alcunha de “Otelo brasileiro”, assim como o Mouro de Veneza matou Desdêmona asfixiando-a, Bento asfixiou Capitu com seu ciúme e insegurança.

Em suas memórias, já velho, Dom Casmurro usa suas habilidades de advogado ao transformar o leitor numa espécie de júri popular para a sua rancorosa acusação contra Capitu. É pelo relato dele, portanto, que ela é apresentada ao público. Ainda que sob a perspectiva de um narrador terrivelmente parcial e pouco confiável, nas entrelinhas, insinuam-se diversos pontos a analisar.

Publicado no fim do século XIX, o romance retrata o declínio de uma elite cujo poder, crenças e valores estavam se desmoronando. A sociedade ditava os papéis que cada um deveria representar, cabendo à mulher uma condição submissa e conformista. A denúncia de José Dias simboliza um aviso sobre a ameaça a esse império no qual Dona Glória, mãe de Bentinho, representa as tradições aristocráticas. Capitu é uma ameaça porque ela não se intimida perante esses ditames e, determinada, não mede esforços para alcançar seus objetivos.

É Capitu quem primeiro insinua o interesse amoroso, quem seduz, é também ela quem toma a iniciativa do primeiro beijo, propõe uma fuga e planeja uma forma de Bentinho se livrar da promessa de ser padre –  atitudes que, naquele contexto, caberiam ao homem. Porém, nesses e outros lances arriscados, ela não demonstra o menor acanhamento, pois é senhora de si, apesar de pertencer à sociedade patriarcal de sua época; o que faz dela uma transgressora nata.

Capitu é apelido de Capitolina, seu nome de batismo, derivado do termo “capitólio”, como se chamava a coluna de Roma onde se situava o templo de Júpiter. Figurativamente, significa “triunfo, glória, apogeu, elevação”. Do latim “capitolium”, provém da palavra “caput”, que significa “cabeça”. Dessa forma, verifica-se a intencionalidade por trás do nome da personagem.

Ela exerce domínio sobre Bentinho e o conduz para que o casamento se concretize. É nesse ponto que o narrador a representa como uma jovem maquiavélica que, em cada atitude, arquiteta seu plano sem, no entanto, deixar transparecer, sabendo manejar muito bem a farsa das convenções sociais: “Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?”.

Porém, a dissimulação de Capitu, que tanto depõe contra ela na narrativa, é apenas uma arma contra uma sociedade hipócrita que restringia as atitudes femininas. Impossibilitada de se mostrar abertamente, ela age com cuidado, evita o embate direto, contorna as situações. E assim, transforma José Dias, que passa de  inimigo a aliado, e, mais tarde, conquista Dona Glória, a fim de ser aceita pela futura sogra. 

Muito madura para a idade e muito avançada para sua época, Capitu também apresenta grande densidade psicológica, característica muito explorada nas personagens de Machado de Assis, precursor do Realismo no Brasil. Tanta audácia e vivacidade fazem com que Bentinho viva à sombra dela. Tanto é que ele mesmo admite: “Capitu era mais mulher do que eu era homem” [...] “Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até a cabeça.”

O capítulo “As curiosidades de Capitu” é o que mais revela os traços de sua personalidade. Capitu deseja saber de tudo, aprender tudo, transcender os limites do que foi designado às mulheres, que eram criadas apenas para mães e donas de casa. Até latim quer aprender, quando o padre adverte que “não era língua de meninas” – é a voz do patriarcado, novamente, tentando em vão detê-la.

E ela poderia estar condenada à obscuridade de sua posição, se não tivesse astúcia. A diferença de classe social entre Bentinho e Capitu, tão destacada pelo narrador, poderia ser mais um impedimento. Cônscia desses obstáculos, com maestria, ela derruba um por um e consegue se casar com o amigo de infância.

Conforme Meyer (1986, p.222): “[...], se considerarmos com atenção esse xadrez psicológico, veremos que Bentinho é quando muito uma boa peça nas mãos de um bom jogador. Ora, Capitu é um ótimo jogador.” 

Apesar de Capitu ascender socialmente com o casamento, isso não significa que Bentinho tenha sido para ela apenas um “trampolim”. No entanto, é preciso reconhecer que esse era o único meio de que uma mulher em suas condições dispunha para conquistar seu espaço numa sociedade na qual lhe eram vetadas outras formas de ascensão como uma carreira, por exemplo.

É possível que Capitu tenha amado de forma obstinada sem ser correspondida à altura por seu amado que, motivado pelas suas desconfianças, acabou por condená-la ao degredo na Suíça. Se as suspeitas são infundadas ou não, pouco importa.

Aliás, reduzir Capitu ao episódio de uma suspeita de infidelidade conjugal é limitá-la. Nos dois extremos, inocentá-la não deixaria de ser uma castração moral que, ao “santificá-la”, colocando-a acima de qualquer suspeita, afastaria as características ambíguas que fazem dela uma personagem tão fascinante. Por sua vez, acusá-la, seria decair num viés machista que condena o adultério feminino como crime hediondo e faz vista grossa para os delitos masculinos. Sem contar que, o simples fato de julgá-la, transforma o leitor num joguete do narrador, dando crédito à sua acusação, num relato autoritário no qual Capitu não tem voz ativa.

Haja vista que, na literatura, como na vida, só o adultério feminino ganha tal ênfase desmedida, só o erro da mulher causa escândalo. Basta observar o número de obras sobre o tema: Madame Bovary, Anna Karenina, Luísa (de O primo Basílio) entre outras. O próprio narrador de Dom Casmurro, ironicamente, relata sem grande alvoroço rumores sobre a infidelidade de seu amigo: “Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo.”

Covardemente silenciada, Capitu só tem maior representatividade na literatura através de escritores que fizeram recriações literárias nas quais não Dom Casmurro, mas Capitu é o foco de obras como Capitu, de Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes; Capitu – Memórias Póstumas, de Domício Proença Filho (no qual Capitu é a narradora) e Capitu sou eu, de Dalton Trevisan, entre tantas outras releituras e referências ao clássico, também adaptado para o teatro, a televisão e o cinema.   Pois, afinal, Capitu é a verdadeira protagonista de Dom Casmurro. Ela é a razão da obra, a “cereja do bolo”, o encanto da narrativa.

Ao final do livro, o narrador diz friamente que Capitu está “morta e enterrada”, na Europa. Porém, nas palavras de Ezequiel, ela “morreu bonita” e, triunfante, continua viva através das memórias de Bento Santiago, um homem solitário que, em sua “casmurrice”, remói antigas mágoas, sem conseguir esquecê-la. 

De um romance que é fonte inesgotável de análise, pode-se afirmar que a personagem saiu das páginas dos livros e se materializou, ganhando vida. Sua força magnética, como define Luiz Tatit, é: “a ressaca dos mares, a sereia do sul, captando os olhares, nosso totem tabu, a mulher em milhares”. Capitu é isso e mais um pouco, infinita e plena no fascínio que exerce.

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ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, São Paulo: Escala Educacional, 2008.

Capitu - Música de Luiz Tatit. Disponível em: https: //www.letras.mus.br/luiz-tatit/163882/ Acesso 23 abr 2016

MEYER, Augusto. Capitu In: Textos Críticos. São Paulo: Perspectiva, 1986.

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Lidiane Santana

 


O Ateneu - Raul Pompéia

O Ateneu, nome do colégio que dá título à obra de Raul Pompéia, é o cenário em que viveu Sérgio, narrador-personagem que descreve detalhadamente as tensões e desventuras de sua infância durante o internato. A afamada instituição, de renome na sociedade, era para onde mandavam os jovens de família abastada com o intuito de transmitir uma excelente formação, disciplina e valores.

Aristarco, o diretor do colégio, é tido por todos em conta de grande pedagogo da época e não poupa discursos entusiastas e eloquentes a fim de recrutar cada vez mais pupilos para sua escola modelo: "Aristarco todo era um anúncio" (POMPÉIA; Raul, 1996,p.3).

Sua grandiloquência caricata serve para denunciar as falhas, as incoerências e os delitos praticados nos colégios tradicionais da elite. Os alunos, por fim, não passavam de cifrões: contabilizados por Aristarco, que fazia cotação dos meninos ao dar-lhes tratamento condizente com a posição financeira de suas famílias: "Às vezes, uma criança sentia a alfinetada no jeito da mão a beijar. Saía indagando consigo o motivo daquilo, que não achava em suas contas escolares... O pai estava dois trimestres atrasado." (POMPÉIA; Raul, 1996,p.10).

Em visita ao colégio durante eventos promovidos pelo imponente diretor, Sérgio, inicialmente, se encanta pela suntuosidade do local e pela pompa das atrações realizadas por professores e alunos. Na casa de Aristarco, encanta-se por Ema, esposa do diretor, uma das raras figuras femininas do romance. Porém, ao ser finalmente instalado no Ateneu, o menino sofre cruel desilusão ao deparar-se com um ambiente sórdido, corrupto e hostil, no qual meninos aprendiam tão-somente o embate diário moral, físico e psicológico. Havia, inclusive,  o ultraje dos veteranos contra os calouros. Quem o apresenta à realidade é Rabelo, um de seus colegas: "Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores.” (POMPÉIA; Raul, 1996,p.15).

Assim, os acontecimentos que se seguem distanciam rapidamente da respeitosa imagem. O Ateneu surge como um antro destrutivo, acobertado por um grande nome, assegurado pelo seu status perante o círculo social. Com um realismo cru, o autor delineia sem meio-termo o clima da narrativa, deixando antever os obscuros fatos que se seguirão, conforme essa outra fala de Rabelo:

"Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como as meninas ao desamparo" (POMPÉIA; Raul, 1996,p.14). Ignorando o conselho de Rabelo, Sérgio aceita a proteção de Sanches, que pouco a pouco tenta aliciá-lo.

Funcionários, professores e o próprio Aristarco, apesar da aparente rigidez e moralismo do colégio, parecem ser, na maior parte do tempo, coniventes com as práticas libertinas entre os educandos. Porém, é necessário notar que por ser um romance escrito em primeira pessoa, o narrador é sumariamente parcial, subjetivo e tende a distorcer os fatos. Assim, embora pautado em acontecimentos plausíveis, o relato de Sérgio pode estar impregnado de emoções particulares, os fatos podem ganhar relevância maior sob um olhar crítico, porém tendencioso, além do agravante de ser um romance memorialista cujo tempo remoto naturalmente deforma a realidade.

Publicado em 1888, O Ateneu divide os críticos, que ora o classificam como um romance realista, ora como naturalista, impressionista e até simbolista. É possível identificar na descrição minuciosa das personagens, inclusive nos desvios de caráter e patologias físicas e psicológicas, algumas vertentes do naturalismo.

O mesmo se evidencia no caso da morte do jardineiro, quando Sérgio sente o desejo mórbido de ver o cadáver "despido dos artifícios de armação e religiosidade" (POMPÉIA; Raul, 1996,p.45) - há nisso uma mera curiosidade científica. Há também, além crítica mordaz ao clero e aos valores religiosos, em trechos de profundo menosprezo pela doutrina e fé cristã, a referência a Darwin, cuja obra teve grande influência na escola naturalista.

Embora Sérgio não ceda às investidas de Sanches, trava amizade com Bento Alves, logo, rasgos de homossexualidade latente são , enfim, francamente escancarados ao leitor: "Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse ânimo de ser amigo." (POMPÉIA; Raul, 1996,p.85).

Há em Sérgio um claro conflito existencial. Essas relações figuram como uma necessidade de proteção ou medo de se indispor perante alguém mais forte. É visível um espírito dúbio, confuso. Às vezes pusilânime, às vezes oportunista, buscando as afinidades que mais o favorecem. Assim como todos os seus colegas de internato, Sérgio sofre com os agravos da puberdade. Rompendo relações com Bento, sente depois fugaz inclinação por Egbert, que se extingue com a tensão sexual que lhe surge novamente em presença de Ema. De um lado, há a ternura maternal, de outro, rasgos da sexualidade aflorada do estudante.

Conforme Alfredo Bosi (2006) “[...] a sondagem psicanalítica não hesita em detectar o complexo edipiano no afeto do menino Sérgio pela mulher de Aristarco, o diretor do Ateneu, execrado como um pai tirano.”

Na descrição das regras do Ateneu, vê-se a crítica ferina ao sistema educacional aplicado na época. Toda a decadência institucional é sobreposta ao narcisismo de Aristarco, um megalomaníaco, ávido pelo reconhecimento público, pelo sucesso, todo ele imerso no Ateneu, que é uma extensão de si próprio.  O que fica muito claro quando após o incêndio do colégio, Aristarco fica sabendo que sua esposa simplesmente desaparecera, mas, com a extinção do Ateneu, ele sequer dá importância ao fato, ficando absorto, inerte, como se tivesse perdido a razão da existência: “Indiferença suprema dos sofrimentos excepcionais! Majestade inerte do cedro fulminado! Ele pertencia ao monopólio da mágoa. O Ateneu devastado! O seu trabalho perdido, a conquista inapreciável dos seus esforços!... Em paz!... Não era um homem aquilo; era um de profundis.” (POMPÉIA; Raul, 1996,p.113).

Enfim, muitos são os conflitos a serem abordados. Das várias reflexões que o romance propõe, a mais contundente é a que próprio autor sintetiza: “Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete.” (POMPÉIA; Raul, 1996,p.97). Logo, é preciso enxergar com naturalidade os acontecimentos narrados, pois não representam casos isolados num local isolado. É o mundo que ali é dado a conhecer, conforme dita o pai de Sérgio no início da narrativa. As instituições refletem o indivíduo.

Outra reflexão interessante é a curiosa relação do homem com o tempo. “Crônica de saudades” é o subtítulo da obra, na qual o narrador questiona o equívoco romântico dos nostálgicos, sempre saudosos dos tempos idos, como se outrora não lhes pesassem as mesmas angústias dos tempos presentes. E essa questão é reformulada no último parágrafo: “Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas.” (POMPÉIA; Raul, 1996,p.114)

Assim, o consagrado romance de Raul Pompéia é uma obra rica, que permite ao leitor várias análises, vários ângulos de observação.


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POMPÉIA, Raul.

O Ateneu – Romance – Editora Ática, 1996.

BOSI, Alfredo

História concisa da literatura brasileira – História e crítica – Cultrix, 2006.

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Lidiane Santana