Crônicas

On the road

Gosto quando o pôr do sol deixa o céu alaranjado e é possível ver as silhuetas das árvores delineadas, negras, nesse efeito de contraluz. Nada como a janela de um veículo em movimento para fazer a gente pensar. Nada como uma longa e silenciosa viagem. Pernoitar na estrada. Passar por lugares quase desertos. Ver o dia amanhecer. Sentir aquele vento na nuca através do vidro semiaberto. Estar só; só, para poder pensar em quem se quer ter junto de si. O breu do caminho na madrugada. O sereno úmido das rodovias. A linha de asfalto entre a mata fechada. Todos dormem, menos eu. É que tudo me entretém. Tudo para mim é espetáculo. Meu olhar curioso percorre as paisagens sejam quais forem. Um pasto esquecido. Um bem-te-vi, um gato imenso. Léguas e mais léguas sem sinal de gente. Só algumas casinhas, ao longe, dormitam sob o verde-escuro das folhagens noturnas. No mato, um livre concerto de grilos. Eu imagino as corujas que não consigo enxergar, mas sei que elas estão lá: envoltas em seu mistério, quietas e ainda mais atentas do que eu.

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Lidiane Santana

Coragem

Os dois com alguns amigos no Ibira. Passeio de fim de domingo. Caminhando devagar, se distanciam dos outros. Os dois sozinhos...no universo. Sentam num banco. Contemplam os cisnes na água. Um branco, um preto, mais um branco, outro preto. Passa um carrinho de bebê. Cães na coleira. Crianças de bicicleta. Casais de mãos dadas. Uma garota de patins.

— Quer chiclete? – ele oferece.

— Quero. – ela aceita.

As faces em brasa, as mãos geladas, mas eles evitam cruzar os olhos. Ele finge consultar o relógio. Ela, que tira fotos do parque. Quando um cede o outro não ousa. Quando o outro ousa, um não cede. Estranho bicho, o ser humano: desbrava um mundo todo, conquista as Américas, pisa na lua...e às vezes, hesita tanto...

Ele diz o nome dela. Ela se volta, meio espantada.

— Quê?

— Nada, não.

Olham-se e, rápidos, desviam o olhar. Passa mais um carrinho de bebê. Mais meia dúzia de cães, mãos dadas, dezenas de bicicletas, outros tantos patins. Tons de aquarela invadem o céu. A tarde diz “good-bye”. Mais um sol se pôs e eles não se beijaram.

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Lidiane Santana

Sentimental

— E o coração, como anda? — pergunta o amigo de longa data.

— É...eu 'tô de caso há uns três meses com uma pessoa bem legal, sabe? Flertando com um antigo rolo, ensaiando uma volta com a ex, tomando coragem pra chamar pra sair aquela estagiária novinha e bonitinha, que eu te falei, lembra? E, é claro, vivo nas caçadas noturnas com os amigos enquanto não aparece alguém especial , sabe como é...

— Sei...então quer dizer que am...

— Amor? Nada. Ninguém. Ninguém mesmo. Coração ‘tá mais vazio que pastel de vento.

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Lidiane Santana


Aquele abraço

Uns colecionam figurinhas, recortes de jornais. Eu coleciono abraços. Dos tantos, poucos são os sinceros e dignos de nota.

Tem o abraço amigo, que nos dá um norte nos momentos difíceis. O abraço de despedida, solene, com muitas delongas. O último abraço — lembro-me bem dos últimos que dei em minha mãe e meu avô. Desses, eu nunca vou esquecer. O abraço de perdão. Demorado, que por vezes, molha-nos os ombros.

Nem sempre é fraternal: há também os abraços lascivos em que um tenta transpassar o outro. São abraços que nos tragam e fulminam.

Existe também aquele abraço de praxe que se distribui nos natais e viradas de ano. Abraços em série, nem sempre dados com o mesmo calor, lá pelo vigésimo, trigésimo conviva da festa.

Há o abraço do reencontro — em que a distância tende a desaparecer numa fração de segundos e cabe o infinito num gesto. O abraço de pêsames…o abraço que, acredite, ninguém desejaria receber. O abraço de urso: eufórico, apertado, que nos esmaga, nos deixa um tanto constrangidos, atrapalhados e vem quase sempre daquela tia que não víamos há muito tempo ou daquele amigo mais efusivo.

Não podemos nos esquecer do abraço acolhedor, que ganhamos quando alguém nos vê chorando. Nem do abraço coletivo, que acontece quando a alegria é de muitos.

E, por fim, o abraço da pessoa amada: inimitável, cuja fórmula desconhecemos. Uma espécie de narcose que nos entorpece. Qualquer coisa entre o arrepio e o acalanto; estranho abraço que nos prende e nos liberta.

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Lidiane Santana


Cotidiano

Quando o silêncio entre dois fica estrondoso e, no ecoar de antigas rezingas, qualquer palavra fere, é preciso recorrer às banalidades:

— Você sabia que o Mauro separou da mulher?

— É mesmo? - responde a esposa sem o encarar , enquanto enxuga a louça.

— Dizem que está saindo com a filha do Nelson...

— Aquela do cabelo vermelho, que foi na formatura da Ana?...Logo vi... — ela pergunta mais curiosa enquanto seca um prato e empilha-o na prateleira

— Não, é outra, a mais novinha, aquela que quase não sai de casa, retruca o marido enquanto guarda os talheres.

— Nossa, quem diria hein! Ela parecia ser tão sossegada.

— Pois é.

E assim, a vida de uns vai servindo ao menos para preencher o vazio agudo da vida de outros...

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Lidiane Santana