Contos

O estranho baile de máscaras

Em tempos de abismo, há quem queira nos precipitar ainda mais. Um sadismo velho, mas inusitado; uma espécie de prazer pelo desespero. Os camicases nos vigiam de cima dos telhados. Abutres senis, alimentam-se de cada impulso de vida. Espalham-se como pragas. Todo segundo abarca um novo risco, raramente uma esperança.

Que é feito dos dias da semana, dos sábados e domingos, dos feriados? Na clausura, pesadelo intermitente, o marcador é sempre o tédio ou a angústia. E se eu me desprender, serei capaz de enfrentar a culpa?

Quando criança, já sonhei muito com um baile de máscaras, só não pensei que seria desse jeito: riso desmanchado, temor no olhar, gente pisando na vida, em vez de pisar em confetes...E hoje sou eu que tiro o absurdo pra dançar e o conduzo. Ele já nem me amedronta — é meu confidente.

Muitas vezes, acordo e não me levanto, fico na cama, atônita, a olhar para o teto. Tento descobrir o propósito da existência. Não consigo, mas continuo assim mesmo. Em parte, é persistência; em parte, inércia. Sou meio atuante, meio espectadora da própria cena. Sei lá, é que me vem um cansaço de lutar constantemente pela coisa mais ínfima...

Na rua, esbarro numa amiga. Nossos olhos pretos nos espelham uma na outra. “E aí, tudo bem?” — Tudo bem — é a resposta de praxe, embora não esteja.

A frequente agonia do então nos fez emagrecer e depois engordar e depois tornar a emagrecer. Estamos pálidas, mas ainda estamos vivas. Esboçamos um sorriso abafado sob a máscara. Foi preciso aprender, enfim, a sorrir com os olhos, nossas líquidas janelas.

Interpeladas por nós mesmas, somos obrigadas a nos dizer: agora, não. Reelaborar ou adiar os projetos, as amizades, os divertimentos, a vida...Vemos, quase impassíveis, o auge da nossa juventude descendo pelo ralo.

— E aquela sua prima, que tinha saído da UTI, ela tá em casa?

— Não. Ela não aguentou, menina.

— Sinto muito, Dai.

— E o Rogério também não.

— Sério?

— Pois é, o pai dele ‘tá de um jeito, Lu, que dá agonia de ver...acabado.

— Eu liguei pra Lourdinha ontem. O Kléber pegou. Ela tá que só chora…

Nossa conversa, por um minuto, se assemelha àqueles noticiários de programas sensacionalistas. As temeridades são nuvens que, de súbito, nos privam da luz. Só que desta vez, elas estão demorando muito para se dissipar. Instintivamente, fazemos uma pausa para um olhar que suplica: “não vá embora, não...eu gosto tanto de você”. Contudo, não é hora de sermos efusivas. O diálogo precisa ser pontual, sem contemplações. E nos despedimos, receosas.

De qualquer forma, o baile há de seguir. Sem marchinha, sem colorido, sem abraço. “Quando isso passar, vamos sair, aparece lá em casa...mas aparece mesmo, hein!” — Eu ofereço um pronto sim, apesar da maré de incerteza.

— Se cuida, tá?

— Você também.

Tudo é tão definitivo e drástico, que me enerva. Às vezes, a gente precisa de um hiato, um dia de “fazer de conta” ou enlouquece. E emergir para a realidade com uma raspa de afago é preciso. Cicatrizar para não sangrar ao retinir do primeiro açoite. E, se cair, ter força pra se compreender, se perdoar, que isso só já nos alivia um pouco.

Ontem, vocês deviam ver, eu fui pau pra toda obra: faxinei casa, dei banho em bicho, troquei lâmpada, reformei móvel velho. Hoje, eu tô sem ânimo pra tarefa mais cotidiana. Preciso de um guindaste pra levantar um braço.

O vírus e seus números ecoam sempre o mesmo obituário sinistro. De vez em quando, evito as notícias, como quem dá meia-volta diante do abismo. Em outras, evoco-as, feito para-raio.

Não sei se me protejo ou se me escancaro.

Taquicardia súbita numa simples ida ao mercado. Uns em defesa da vida, outros, da conveniência. Com máscaras no queixo, são tristes arremedos de pelicanos. Observamos uns aos outros com um misto de asco e comiseração.

A consciência (ou a falta dela) criou um universo paralelo, alheio, como os três macaquinhos chineses que não veem, não ouvem e não falam sobre nosso infortúnio, porque esse não lhes diz respeito. O senso de coletivo foi esquecido numa gaveta qualquer. Bolor e medo disfarçados com borrifadas de pouco caso.

Há mais desempregados do que nuvens no céu. O sustento virou uma triste loteria. Basta uma vaga surgir para se amontoarem centenas e milhares de pombos famintos a rodeá-la. Não há lugar no mundo para todos. Um quase nada é disputado com afinco.

Todo dia é um fazer das tripas coração diferente.

Num vaso do meu quintal, abriu um cravo roxinho, roxinho, que nem esta saudade danada que eu sinto das coisas mais comuns. A mesa do boteco da esquina, a cerveja trincando, dois ou três amigos em volta pra jogar uma conversa fora. Já era muito duro antes, não nego. Ainda assim, podíamos ver a expansão de alguns sorrisos.

Toda a esperança que trago reside em versos de canções de luta. Nunca pensei encontrar tanta força em velhos refrões. Repeti-los a todo custo, fazer deles hinos para não desabar, talvez seja um recurso. Quero dançar e me entorpecer, até não dar mais acordo de mim mesma nem deste contexto. Quero trocar a faixa: aqui, a música habitual é um réquiem custoso de ouvir...

O baile segue descompassado, cheio de pisadas nos pés, de encontrões, de cotoveladas. Mas, como bons filhos que somos, tentamos não amarrotar a roupa e não desfazer de todo os cachinhos aninhados a tanto custo pelo desvelo materno. Por mais que a gente saiba: é impossível. No fim do evento, estaremos todos de traje desfeito, de espírito puído, tentando manter ao menos a pose para um próximo retrato.

Tudo pode mudar de uma hora para outra, eis uma guerra. No fronte, é um “cada um por si” ferrenho. Nem tudo, porém, é egoísmo: todos os dias, heróis mascarados desarmam as bombas dos camicases sobre os nossos lares, mesmo sabendo que o mundo inteiro é um campo minado.

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Lidiane Santana


O Oliveira

Corretíssimo. Organizadíssimo. Pontualíssimo. O relógio de ponto da empresa em que trabalhou, que o diga! Funcionário exemplar que foi, por trinta anos no mesmo cargo de auxiliar administrativo, nunca faltou ao trabalho uma única vez. O chefe se assombrava: "Homem, pensei que você ia tirar folga: amanhã é o seu casamento." Mas, ele, irrepreensível: "Caso no civil de manhã, Seu Martinelli ; à tarde, torno ao batente. Algumas horas de dispensa do serviço me bastam".

Cioso das menores falhas. Exímio cumpridor dos deveres. Honrava os compromissos com muito rigor. Quando não — por inevitável contratempo — passava em claro as noites, pensando. A mulher enlouquecia. Os filhos fugiam. Em casa, era um general: exigia que tudo funcionasse em tempo cronometrado.

Enfim, aposentou-se. Tendo trabalhado desde cedo, a aposentadoria por tempo de serviço não veio encontrá-lo tão velho. Sem contar que, talvez pelos excelentes e regulares hábitos ou por simples predisposição, tinha uma saúde de ferro.

A conselho de amigos, parentes e colegas, ia fazer a primeira grande viagem. Um cruzeiro (internacional). Pra quem quase não punha o nariz fora de casa, hein! Ele estava radiante. Já tinha dado entrada no processo da aposentadoria. Comprara a passagem. A mulher havia feito as malas, então, na véspera de partirem, enquanto jantavam e riam — e ele, ele que nunca ria, caramba, mas riu — ao imaginar as peripécias da viagem, o infeliz se engasgou com um caroço de azeitona.

Tossiu, tentou cuspir, beber água, erguer os braços, mas não teve jeito. Quando a esposa voltou com a ajuda, que por fim , aflita, foi buscar, encontrou-o roxo, já rígido e frio.

Morrer...morrer engasgado com um caroço de azeitona. "Um homem tão sério, tão trabalhador, morrer numa presepada dessas." — lamentava o irmão mais velho.

Todos estavam inconformados no velório. A viúva, em estado de choque, soluçava enquanto segurava um vidro de azeitonas em conserva sem caroço, que encontrara esquecida na despensa pouco depois do incidente.

Na nota de obituário do jornal da cidade, imprimiram uma singela homenagem: "Descanse em paz, saudoso amigo Justo Oliveira" — era esse o nome dele.

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Lidiane Santana

Sofia

Ela era toda rara: ruiva, canhota, alta. E as coisas mais simples do mundo, para ela, eram complicadíssimas. Era o tipo de pessoa capaz de resolver uma equação em segundos, mas puxar assunto com o cara que chamou sua atenção numa festa, era um esforço sobre-humano. Porém, sabia ser receptiva em sua atrapalhação. Era um terreno árduo, mas os perseverantes conseguiam vencer aquele acanhamento.

E lá vinha Sofia: alegre, saltitante, de sapatos vermelhos, indo se encontrar com o namorado, que, quase sempre, era um moreno de sorriso largo.

Nos dias de calor, gostava de usar seu vestido verde, repartir o cabelo e fazer tranças que a deixavam com ares de anime japonês.

Sim, ela tinha um gato. Grande, muito branco, como um olho de cada cor. O nome dele era Cosmos. Juntos, eles eram os incidentes biológicos mais belos que alguém já viu.

Cosmos geralmente vinha acalmá-la de suas crises brincando com as ondas avermelhadas de seu volumoso cabelo.

Falam, muito injustamente, de uma certa volubilidade nos gatos, de eles se apegarem ao lugar e não às pessoas. Mas os gatos sabem quando os donos sofrem. E ela sofria. Mais uma vez. No costumeiro sofá, entre as almofadas de veludo escuro, ela abafava o choro convulso. "A vida é assim mesmo", dizia-lhe a mãe.

E depois de uma decepção, vinha outra, e mais outra, e assim, sucessivamente, quando se pensava que era a última, aparecia uma nova — como aquelas bonequinhas russas, que nunca findam, umas dentro das outras...

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Lidiane Santana


Ricardo

Firme, ele segue para mais um encontro. Perfumado e de cabeça erguida; a barba feita, as unhas cortadas, as meias limpas, sapatos novos e um coração enxovalhado...

Não tinha nada de Ricardão. Não era forte nem muito alto. Magro,sem ser atlético. Rato de biblioteca. Mas não usava óculos, não - que eu tenho horror a estereótipos fáceis.

Começou no tempo da escola.

A professora de história era tão bonita. Como é que ninguém dizia isso a ela? Que olhos, que cabelos! Ele poderia ficar o dia inteirinho olhando pra ela, de boca aberta, com cara de bobo. Se ela fosse uma obra de arte, La Pietá ficaria desfalcada, porque o próprio Cristo se renderia pra ficar junto dela.

Um dia, ele se encheu de coragem:

— Professora, a senhora parece...

— O quê, Ricardo?

— Alguém igual a senhora...

E a classe caiu na gargalhada.

Achou melhor se declarar no papel, soltar o verbo depois. Foi quando nasceram os primeiros versos. Promissores para a idade. Neles, sua musa era chamada de deusa, comparada à Helena de Troia, cuja beleza causou uma guerra. Mas nunca mostrou a ninguém o primeiro poema. Nem o seguinte.

E assim, seus armários se abarrotavam de amores engavetados.

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Lidiane Santana


Tantantãram

Nunca foi outro o sonho dela: casar. Desde o primário, entre os coleguinhas, fazia a cotação dos meninos para futuro noivo. Espantou dezenas de namorados com a tal ideia fixa de casamento, já no primeiro encontro.

E se imaginava sempre: toda de branco, com um vestido deslumbrante, flor de laranjeira na cabeça, de braço dado com o pai a entrar na igreja, vagarosamente, ao som daquela consagrada marcha nupcial .

E todos no altar, boquiabertos com sua figura. E via a igreja toda enfeitada com rosas brancas...ou lírios, ou, quem sabe, camélias - não tinha decidido ainda. Mas haveria de ser o seu momento. Uma perfeição de conto de fadas. Só faltava o noivo.

E nenhum era bom o bastante. Mas, um dia, já na faculdade, reconheceu num estudante de arquitetura o tão sonhado esposo. Ambos de família abastada, não economizaram na celebração.

Na igreja mais imponente, a decoração perfeita, o melhor salão, um bolo de revista, sete damas de honra e sete padrinhos, viagem de lua-de-mel na Europa e o escambau: um sonho.

Ao som dos tam tam tarãns de Mendelssohn, ela entrou visivelmente emocionada. O vestido, branco e rendado, de corpete bem justo, acentuava sua cintura já muito fina. De fato, uma aparição. Todos ficaram bestificados com a beleza da noiva. Finda a cerimônia, dirigiram-se ao salão de festas.

Os canapés agridoces fizeram sucesso entre os convidados, que não acharam no quê pôr defeito. Desde a valsa, porém, a noiva parecia estranha. Mas, no tumulto da festa, ninguém deu reparo. Trancada no banheiro, ela chorava desesperadamente. Era o momento mais esperado de sua vida...e num instante, acabou, entende? Assim, banalmente, estupidamente, cumpriu-se o script e pronto?! Tanta expectativa para isso???

A ausência da noiva começou a ser notada e, quando uma das madrinhas foi buscá-la para jogar o buquê, encontrou-a no banheiro enforcada com o véu do vestido. No espelho, escrito de batom, um adeus patético e enigmático ao noivo:

"Ricardo, me perdoe. Passei anos da minha vida construindo um castelo e agora ele ruiu ...

Foi enterrada vestida de noiva mesmo. No jazigo da família, onde a escultura de um anjo nu fazia sombra, sob o mármore antigo ela teve, enfim, a concretude do seu sonho.

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Lidiane Santana

As farpas

A caminho do trabalho, vinha um homem. E, avistando um sobrado, deu meia volta, preferiu tomar outro atalho. Pois lhe feriam as lembranças de certa pessoa que morou lá. A última gaveta do armário nunca se abria. Tinha medo de encontrar um ou outro suvenir que fizesse ressurgir antigos temores. Ouvindo o rádio, trocava de estação imediatamente, caso tocasse alguma música marcante em determinada época de sua vida. Detestava certas datas comemorativas por ter sido extremamente feliz ou infeliz, exatamente num dia daqueles, em anos remotos. Que a felicidade, como era sabido, não voltaria mais. E a infelicidade, ao ser lembrada, era revivida.

Mudou outra vez o trajeto, receoso de novo encontro indesejável. E, poupando-se, tentava seguir adiante. Não mais aquele caminho. Não mais aquele assunto. Não mais aquele restaurante. Não mais aquela música. Não mais aquele filme, aquele prato, aquele vinho. Não mais aquela praia, aquela rodovia, aquela praça. E os “nãos” acumulavam-se, ao passo que tudo remete a qualquer coisa que alude a algum ponto sensível e delicado. Ou a uma neurose viciosa que ele já alimentava paternalmente.

Evitando de forma obstinada todas as lembranças dolorosas, decidiu não sair mais de casa. E mesmo assim, as lembranças o importunavam, entre as paredes do próprio lar.

Mudando de residência e de hábitos, dentro dele, elas ainda ressurgiam para atormentá-lo. Com ou sem propósito.

Enfim, ele saiu de si. E desde então, nunca mais foi visto.

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Lidiane Santana



A ordem do dia

“As emoções são nocivas: afetam o equilíbrio”. O comissariado do hemisfério esquerdo do cérebro ordenou que todos agissem apenas com a razão. Mas um pequeno grupo do hemisfério direito se opôs: “façam lobotomia em vocês, seus bostas!” Tumulto, ânimos exaltados. E a ordem se descumpriu com louvor.

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Lidiane Santana

A Colombina


Era o Carnaval de outros tempos. E uma das melindrosas estava de enlace com seu Arlequim. Mas, ao amor dos dois, se antepunha a fatal Colombina. O Arlequim não resistiu: tomado por uma dessas paixões instantâneas, parecidas com o efeito dos lança-perfumes, jogou um bilhetinho à sua musa de ocasião. Muitos também juraram tê-lo visto beijar as mãos dela, em pleno corso da Avenida Paulista.

Isso não passou despercebido pela melindrosa nem por sua mãe, que, enfurecida, mandou dois brutamontes ferirem a navalhadas a face da Colombina.

Vinda da Itália ainda pequena, foi, como tantos imigrantes, costureira numa das confecções do Brás. Em seguida, trabalhou como camareira no Hotel Bella Vista.

Não tardou que ela fascinasse os frequentadores do local. Romilda Machiaverni, como era então chamada, teria uma vida comum, se o seu porte e charme não tivessem entoado um "ó abre alas que eu quero passar", fazendo dela Nenê Romano, conhecida cortesã que andava sempre em companhia de homens ricos e poderosos.

Às vezes, Nenê parecia escutar a voz da mãe, que lhe dizia sempre: “ A beleza é trágica, minha filha” – e assim ecoava essa sentença, como um prenúncio de desgraça…

Marcada para sempre, mas nunca vencida, a moça resolveu lutar pelos seus direitos. Moveu ação contra quem lhe havia feito o atentado. Só que o processo movido por Nenê Romano não vingava: era a palavra dela contra a de gente rica e influente.

Numa dessas tentativas, porém, ela estreitou relações com Moacyr Piza, jovem advogado, além de jornalista e poeta. Sendo assim, a despeito de demandas profissionais, ele encontrou em Nenê sua musa.

E a Colombina viveu um tórrido romance com seu Pierrô. Um caso conturbado, repleto de excessos, ciúmes, cenas.

A sociedade ficou escandalizada. Naquela década de 1920 (talvez, em tempo algum) jamais se aceitaria o relacionamento entre um homem de família tradicional, quatrocentona e “aquela mulher”.

Os dois, alheios a tudo, viviam seu idílio livremente. Eram vistos no Teatro Municipal, nos cafés, bares e altas rodas da boemia paulistana. Nenê Romano, exultante de beleza apesar da cicatriz, passou a ser ainda mais odiada. Na rua, lhe faziam olhares feios, gestos de reprovação:

— Mal posso ir encomendar um vestido sem que se passe um episódio desagradável, querido…

— Pois me fale quem te destratou, Nenê. Quem quer que seja, há de pagar!

— Pode muito bem ser um amigo seu, alguém da sua família ou até um cliente...vai brigar com todo mundo por minha causa?

— Se preciso for…

— Sejamos francos: não podemos mais continuar juntos. É melhor que...

— Não, isso não! Prefiro morrer a me ver longe de ti.

E eram juras e súplicas com intermináveis beijos entrecortados de lágrimas. E varavam as madrugadas, prometendo nunca se separarem etc, etc.

Naquela época, já estavam disponíveis ou em estudo, vacinas contra varíola, tétano e febre amarela. Essas e outras moléstias seriam erradicadas com o tempo. Só contra as paixões não havia prevenção nem cura. O que certamente há de soar piegas, escancarado, e por isso mesmo verdadeiro, feito um samba-canção.

Poucos eram os casos que o advogado atendia. Muita gente se recusava a ter relações, ainda que profissionais, com um amante de Nenê Romano, com quem passeava de carro nos bairros nobres e por quem vivia fazendo escândalos.

Um dia, no entanto, senhora de si, a Colombina resolveu deixar seu Pierrô. A razão disso, ela não quis nem era obrigada a dizer, mas ele estava certo de que a amada tinha outro.

— E se tiver?! – ela esbravejava enquanto batia na mesa, furiosa. Agora acha que é meu dono???

Foi necessária a força de três homens para segurá-lo em sua ira contra Nenê. Sabia-se que ela mantinha outros casos, inclusive com um fazendeiro muito rico; dizia-se que até o governador visitava seu leito.

Moacyr abandonara tudo daí então. Profissão, casa, família. Obcecado, até um livro mencionando a ex-amante ele escreveu. E o desabafo, todavia, não atenuou o amargor da rejeição, que soava como algo imperdoável, um acinte contra a sua pessoa.

A barba por fazer, as unhas crescidas, o colarinho imundo. Passou um tempo assim. Depois, intimado por amigos e familiares, retomou covardemente a vida. Apenas por fora. Por trás da indumentária novamente impecável, escondia-se um ser em desalinho.

Logo, como quem reclama um objeto de luxo perdido em mesa de jogo, tornou a procurá-la. Numa noite, mandou flores e um faqueiro de prata a Nenê – presentes que ela recusou. Moacyr, então, foi até a casa dela para conversar.

Ela disse que estava de saída, recusava-se a vê-lo, mas concordou. Somente para dar um fim àquelas insistências. Entraram num carro de aluguel. “Só uma volta” – ela consentiu, impaciente. “Só uma volta e eu te deixo em paz” – ele confirmou, humilde. E seguiram devagar, conforme foi ordenado ao chofer. Ele começou a falar baixo e lacrimejante:

— Escuta: minha vida não tem o menor sentido apartada da tua. Nós precisamos nos…

— Sim. Já sei de cor o que vais dizer…

— O que foi que eu te fiz, Nenê?

— Nada que outros já não me tenham feito.

— Quem é ele? – gritou, por fim, já alterado. Quem é ele??? – insistiu, consumido de raiva.

— Faz diferença saber? – ela fez um gesto para descer, ele porém segurou-a ternamente pelo braço.

— Olha, eu te quero de volta do mesmo jeito. Eu te aceito, volta, volta pra mim…

— Aceita? – ela riu nervosa. Presta atenção: o tempo todo, eu não tive escolhas. Fiquei com aquilo que essa vida mesquinha me ofereceu. Uma casa de cortiço, um trabalho que me esfolava viva e uma sopa rala como refeição. Para fugir disso, entrei nesta vida que todos sabem. Tive algum conforto, à custa sabe-se lá de quê. O mundo está sempre me negando tudo, mesmo eu pedindo tão pouco. Ao contrário do senhor, que sempre teve tudo o que quis.

— Menos a ti. Mas eu te quero de volta, meu amor…

— Eu também tenho vontade própria, percebe? E eu não te quero mais, nem sei ao certo se um dia te quis ou se foste apenas um dos tantos homens que me tiveram por conta...

Continuaram discutindo. E na travessa da Avenida Angélica com a Rua Sergipe:

— Não faça isso comigo! – ele tremeu apontando a arma.

— Tudo isso por não conseguir ouvir um “não”? E eu, que já ouvi tantos…

— NÃO! NÃO! NÃO! – e a cada não, um tiro à queima-roupa.

— Ai, Moacyr, por quê? – foi o que o motorista ainda pôde ouvir dela, agonizante.

— Não.

E num derradeiro disparo contra si, caiu morto sobre o corpo de Nenê Romano.

Poeta e musa, enfim, se calaram.

Hoje, ainda é possível ver no cemitério da Consolação, sobre o túmulo de Moacyr, uma escultura de mulher em forma de interrogação, como se questionasse: “Por quê?” – mas essa pergunta abafou sem resposta sob o estilhaço de pólvora.

Ela foi referida ptor "mundana" e insultada nos jornais de então, sem ter tanta pompa em sua última morada. Perdeu-se no abismo do tempo e da classe social – com distinções até na morte.

Será a beleza trágica? Ou a tragédia é fruto do sentimento de posse que assola os homens? Será a paixão assim? Um brutal egoísmo?

À sombra das árvores das necrópoles, jazem incógnitas à espera de resolução...

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Lidiane Santana